Seu filho já está em casa, junto à nova família e a um ambiente totalmente novo e cheio de desafios. E agora, como lidar com a adaptação da criança adotiva, com as diferentes demandas nesse período inicial?

Seja na convivência familiar, na escola ou mesmo quando o assunto são hábitos alimentares, há muito a ser trabalhado, por isso calma e paciência são fundamentais. Para trazer reflexões sobre o tema, conversamos com a psicóloga e Diretora de Relações Públicas da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), Suzana Schettini, na continuação do nosso bate-papo que você confere abaixo e, se preferir, também em vídeo no nosso canal no Youtube.

IGA: Entre tantos aspectos, o que é fundamental que os pais tenham em mente, assim que a criança chega à nova família?

Suzana Schettini: Tem alguns aspectos fundamentais que precisamos observar, principalmente o tempo de transição de uma história para outra, que não é imediato, pois a criança não vai assimilar de uma vez todos os ensinamentos que pretendemos passar. Gosto de comparar a fase de adaptação com a travessia de uma ponte: a criança precisa chegar ao outro lado e, enquanto estamos na ponte, junto com a criança, precisamos ter muita atitude adotiva.

Na prática, vemos pais muito ansiosos com a adaptação da criança adotiva. A criança vem de um contexto, por exemplo, em que estava estudando em escola pública pequena, com pouca demanda. Os pais, com a intenção de ajudá-la, pensam “vou colocar meu filho na melhor escola, no judô, na natação, na dança”. E o que digo é: calma! Não podemos trazer tanta coisa no começo, sobrecarregando a criança.

No início, o principal para uma criança, assim que ela chega à nova família, é justamente aprender a ser família!

IGA: Se os pais precisam “aprender a ser pais”, quais são os aprendizados mais importantes para a criança na fase de adaptação?

Suzana Schettini: Para a criança, aprender a ser filho é ainda mais importante que a escola. É importante para o filho compreender o que os pais esperam dele, assim como os pais têm que aprender a ser pais e compreender aquele serzinho com suas necessidades e especificidades, para que a criança se sinta segura, amparada e acolhida, compreendendo que a aceitamos do jeito que ela é, e com toda sua história.

Se a criança for um pouco maior, ela pode sentir vontade de falar sobre sua família biológica. E isso não precisa nos assustar, pois essas são as memórias que ela tem num primeiro momento. Precisemos acolher e amparar, mas sem realizar um interrogatório, pois tem dores que a criança não expressa, que ela guarda, e que só serão manifestadas quando se sentir segura.

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Adaptação da criança: é importante ter paciência inclusive com as questões escolares.

Os primeiros dois anos após a adoção são de muita adaptação, por isso devemos inserir as coisas gradativamente. Um boletim que vem com nota baixa, por exemplo, não deve ser motivo de ansiedade para os pais. Vamos transformar esse boletim no boletim do afeto, do vínculo, o passo a passo do que acontece em casa.

Falando na vida em casa, é preciso ter muita paciência também: você vai dizer milhares de vezes que a toalha deve ser colocada em determinado lugar, que o sapato tem o lugar certo, pois a criança vai demorar a aprender, uma vez que ela nunca teve na vida alguém que lhe desse orientações e, portanto, não sabe sobre regras.

A atitude adotiva é exatamente isso, inserir gradativamente novos ensinamentos. A criança vai se organizando a partir da relação com os pais.

 IGA: Ou seja, não se deve exagerar nas exigências nem cobrar demais, certo?

Suzana: Com certeza não, pois se somos exigentes demais, cobramos demais ou castigamos a criança a qualquer pequeno deslize fora dos “conformes”, estamos ensinando à criança que ela não agrada, não atende às expectativas dos pais. Isso faz com que ela sinta que não é um bom filho ou filha, sendo que existe uma autoestima muito prejudicada devido a seu histórico e isso não pode ser reforçado.

No meu trabalho como psicóloga, em que atendo inclusive crianças e adolescentes que estão em instituições, tenho um caso de uma menina que foi devolvida e o que ela relata é que “não foi uma boa filha, não soube ser uma boa filha”. É claro que ela não soube ser filha, e eu digo que a culpa não é dela, mas sim dos pais adotivos que não souberam e não aprenderam a ser pais. Nós somos os adultos da história, então a criança não tem culpa. Ela não tem culpa da sua história anterior, ela não escolheu isso. Nós é que não soubemos dar a ela o tempo necessário.

IGA: E a questão da alimentação, principalmente com crianças que passaram por instituições de acolhimento?

Assim como ocorre com os conteúdos escolares, também não podemos ter pressa em relação à alimentação na fase de adaptação da criança adotiva. Eu tive um caso de um menino que foi adotado aos cinco anos de idade e não gostava de brócolis. Acontece que a mãe era naturalista e decidiu que o filho ia seguir pelo mesmo caminho – ela quis introduzir com toda a boa vontade uma nova alimentação com muitos legumes e verduras.

Só que o menino estava acostumado a comer arroz, feijão, carne, no máximo uma cenourinha de vez em quando, então ele olhou para os brócolis e achou que aquilo não era de comer e rejeitou o alimento. A mãe até insistiu dizendo que os brócolis têm ferro, que é bom para o crescimento e tudo mais, mas a conclusão da história é que ele criou uma resistência alimentar e não quer comer mais nada.

Hoje ele entra no meu consultório e a primeira coisa que diz é “tia, eu não quero comer brócolis”. Então com os alimentos acontece a mesma coisa: precisamos saber o que a criança comia no abrigo para ir introduzindo aos poucos novos sabores, cores e hábitos à sua alimentação.

 

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Adaptação da criança: novos hábitos alimentares devem ser introduzidos aos poucos.

IGA: Como os pais adotivos podem lidar com as questões escolares? Como aproximar a escola da realidade da criança?

Suzana: Temos um projeto em Recife chamado “Adoção e Cidadania na Escola”, que tem como objetivo ensinar a atitude adotiva nas escolas, uma vez que é um local onde muito preconceito acontece, onde incrivelmente há muita desinformação em relação à adoção. Na escola não há especialistas em crianças que foram adotadas, especialmente as maiores, que vêm com a vivência do abrigo e com defasagem no desenvolvimento.

É na socialização do ambiente escolar que essa defasagem aparece de forma mais acentuada e muitas vezes a escola não sabe como lidar com essas diferenças. Então são muito comuns os rótulos dados com base no comportamento da criança: Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), autismo, esquizofrenia etc. E mais uma vez é preciso calma por parte dos pais em relação a esses rótulos, pois quando entramos no mundo da adoção, essas situações vêm junto.

Cada família adotiva que entra na escola vai fazer a diferença e não podemos brigar com a escola. Conheço famílias que trocaram o filho de escola três vezes, alegando que a escola tem preconceitos e não sabem como lidar. Mas isso é um ciclo sem fim, porque quase nenhuma escola sabe como lidar: você como pai é que tem que fazer a diferença, conversando com a escola, falando sobre a história da criança, de seu processo de adaptação e dos esforços que tem feito.

Precisamos ensinar a escola a se preparar para receber essa criança, inclusive vale sugerir que eles chamem alguém de um grupo de apoio à adoção para conversar sobre isso. A escola, com suas exigências e com a pressa e dificuldades que encontra em olhar para as especificidades da criança, acaba se tornando um local de muita ansiedade. De novo, é preciso ter calma, tranquilidade e atitude adotiva para lidar com esse aspecto.

Recomendo nessa etapa de adaptação da criança adotiva uma escola menor, com um olhar mais individualizado e inclusivo, com menos demandas, o que ajuda a criança a se sentir mais confortável e possa se desenvolver aos pouquinhos nesse primeiro momento.

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Adaptação da criança: diálogo constante e trabalho conjunto com a escola são essenciais.

 

A escola sempre traz questões para a família, como por exemplo o hábito de pedir a foto da mãe grávida ou da família da criança, em época de Dia das Mães. Mas não devemos enxergar isso como conflito ou ofensa, e sim como uma oportunidade para conversar com a escola, levando por exemplo a foto do momento em que conheceu a criança. Usando o exemplo de casais homoafetivos, a criança irá entregar essa foto para os dois papais que exercem essa função.

Felizmente há escolas que já tiveram essa visão e mudaram, criando por exemplo o Dia da Família. Por isso é importante que a escola saiba da nossa história, das diferenças e especificidades dos muitos tipos de família, para que haja um trabalho conjunto nessas questões, e elas se desenrolem de forma natural, distanciando-se dos rótulos.

IGA: Como lidar com os comportamentos esperados a cada fase da criança e diferenciá-los de possíveis comportamentos ‘nocivos’?

Suzana: Precisamos ter muito cuidado em relação às fases de desenvolvimento da criança, principalmente na adoção de crianças maiores. É preciso saber identificar e entender quais comportamentos são característicos de determinadas fases. A criança de três anos, por exemplo, está vivenciando o que chamamos de primeira crise do desenvolvimento. É quando elas fazem birra, já têm cognição para fazer valer de algum modo sua vontade através do choro, grito, deitar-se no chão etc. E isso não é devido à criança ser adotada, mas inerente a toda criança. Pode ser que no abrigo ela sempre foi atendida primeiro porque gritava mais, mas esse é um comportamento que foi instalado, e é preciso “desinstalar”. Se ela gritar, não grite, fale baixo, mostre a ela que não há mais necessidade daquilo. Muita calma nessa hora!

É fundamental e imprescindível que os pais adotivos de crianças maiores e adolescentes tenham um acompanhamento na fase pós-adoção. Funciona como um espaço de apoio onde os pais vão colocar suas dúvidas, pois só vivenciando é que darão conta das situações e desafios do dia a dia.

Muitas vezes nos pegamos desprevenidos, ansiosos, sem saber o que fazer. Preparar-se para a adoção e frequentar um Grupo de apoio de pós-adoção ajuda muito, seja presencial ou virtual, lendo e fazendo contato com pessoas que já adotaram.

 

 

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