Como é viver em uma instituição? O que acontece quando um jovem completa 18 anos e tem que sair do abrigo pra tocar sua própria vida? Quais são as marcas desse período complexo, conturbado e cheio de incertezas para aqueles que passaram por serviços de acolhimento no Brasil? A pesquisa “Minha vida fora dali”, realizada pelo Movimento Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária, com coordenação da Doutora em Psicologia Luciana Cassarino-Perez, buscou justamente trazer à tona a perspectiva desses jovens, egressos do acolhimento, com suas experiências, dores, opiniões e expectativas sobre o próprio processo que viveram.

“Não faria sentido não ouvir os jovens, que são os verdadeiros especialistas sobre o tema. Devemos considerar a perspectiva deles, como protagonistas desse processo”, ressalta a pesquisadora Luciana Cassarino-Perez.

Trata-se de um estudo precioso, realizado em plena pandemia do Coronavírus e concluído recentemente, que retrata problemas conhecidos, mas sob o viés inédito de quem sofre na pele as deficiências do sistema de acolhimento no Brasil.

“Essa escuta é muito importante porque temos pouquíssimas pesquisas no Brasil sobre os egressos do acolhimento. O tema é muito estudado, principalmente na América do Norte e Europa. Mas no Brasil, ainda não. Fundamental ter base científica para se pensar em estratégias para atender a esses jovens”, avalia Luciana. 

O estudo traz, a partir das visões dos próprios envolvidos, os pontos positivos e negativos e sugestões do que precisa ser feito, no que se refere ao apoio às famílias de origem, ao reordenamento dos serviços de acolhimento e ao apoio à criança e adolescente no processo de adoção.

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Minha Vida Fora Dali: Palavras mais utilizadas pelos jovens durante as entrevistas.

A entrada nos serviços e o acompanhamento familiar

Grande parte dos entrevistados relatou que a entrada nos serviços de acolhimento ocorreu abruptamente, quando a situação já estava muito crítica e sem que eles se dessem conta das razões do afastamento da sua família de origem. Há inclusive relatos de separação de irmãos, sem qualquer tipo de preparo.

“… Eles chegaram lá em casa, conversaram com a minha mãe, conversaram comigo, e pegaram minhas coisas, e já me levaram pro abrigo. Entendeu? Eles chegaram lá e já me levaram.” Tulipa (nome fictício), Pará, 18 anos

Quanto ao contato com os familiares, quando ainda estavam nos abrigos, alguns jovens relataram não receber visitas ou visitar seus familiares, ao passo que outros relataram visitas esporádicas, e poucos revelaram que o contato foi mantido durante todo o acolhimento. São relatos de solidão, da falta de alguém para conversar sobre o que se estava sentindo. E aqueles que mantiveram o contato com sua família extensa, como por exemplo os avós, destacam a importância dessas relações.

Falando em relações familiares, muitos jovens foram críticos em relação à falta de acompanhamento às famílias, durante o tempo em que estiveram acolhidos. Eles destacam inclusive as consequências desse fato, como a falta de busca de informações por parte dos pais biológicos.

Nas tentativas de reintegração familiar, infelizmente a história se repete. Não foram raros os relatos de processos realizados de forma arbitrária, sem uma eficiente avaliação psicossocial – e claro que esses processos não foram bem-sucedidos. Em contrapartida, as experiências de retorno à família de origem que deram certo estiveram sempre atreladas ao acompanhamento constante das equipes técnicas.

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Egressos do acolhimento: relatos de solidão.

 

Acolhimento institucional

Um dos temas centrais, o acolhimento institucional, constitui uma das experiências mais impactantes para todos os entrevistados. Alguns deles passaram por quatro ou mais abrigos ao longo de sua trajetória.

As observações dos jovens vão desde a infraestrutura dos locais – alguns com condições precárias de instalações e higiene – até a grande quantidade de acolhidos. Algumas casas de acolhimento tinham mais de 20 crianças e adolescentes institucionalizados,  o que não é permitido por lei. Esta é uma das principais críticas ao acolhimento institucional, pois torna impossível a atenção individualizada, o que reforça a importância e preferência ao Acolhimento Familiar.

Nos abrigos, os jovens estabeleceram sim vínculos com membros da equipe de cuidadores, porém, por se tratar do ambiente de trabalho dessas pessoas, o vínculo não foi mantido. E em alguns casos, o despreparo dos profissionais interferiu negativamente no cuidado com os acolhidos.

Os jovens afirmaram que muitas vezes suas opiniões não foram consideradas e que não ocuparam o lugar de protagonistas na tomada de decisões sobre suas próprias vidas. Além disso, apontaram a necessidade de que as crianças e adolescentes sejam mais instruídos sobre seus direitos, sobre seus processos e serviços ou políticas de apoio aos acolhidos.

A preparação para a vida adulta também foi objeto de críticas. De forma geral, os jovens relatam que os serviços priorizam a inserção no mercado de trabalho, com pouco ou nenhum suporte para outros aspectos da vida diária, como educação financeira, realização das tarefas domésticas e manutenção dos estudos.

“… Muita coisa eu tive que aprender na marra e também no medo né? Medo de fazer 18 anos e como é que eu vou me virar lá fora.” Taurus (nome fictício), São Paulo, 20 anos

Há sim relatos positivos em relação ao apoio psicológico, primordial para os egressos dos abrigos. No entanto, o estudo observa que o acolhimento institucional não se mostrou uma experiência totalmente positiva para nenhum dos 27 jovens entrevistados, ainda que tenha cumprido sua função protetiva.

“Existe uma lacuna nesta transição”, pontua Luciana. “Em situações de vulnerabilidade, o jovem vem sendo protegido e amparado em diversas frentes até os 18 anos. Depois, são raros os exemplos de acompanhamento e continuidade desse cuidado. Também não existem mais dados, de como eles estão, o que aconteceu. Tornam-se invisíveis.”

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Vínculos são de extrema importância, seja com padrinhos, irmãos mais velhos, educadores ou pais adotivos.

Acolhimento familiar e convivência comunitária

Quando questionados sobre o Acolhimento Familiar, a maioria dos participantes do estudo nunca teve contato com famílias acolhedoras, e sequer sabia da existência dessa modalidade. Dos 27 entrevistados, apenas 3 passaram por serviços de Acolhimento Familiar. Eles trazem relatos dos benefícios dessa transição gradual para a vida em sociedade, mas também de muitas trocas de família acolhedora e até de violências, evidenciando a constante necessidade de preparo e acompanhamento por parte das equipes técnicas responsáveis.

“Muito contundente a necessidade de avançar na implantação do acolhimento em famílias acolhedoras, que no Brasil representa apenas 4% do acolhimento. Isso é reforçado na pesquisa pelos relatos: os jovens fazem essa transição para a vida adulta com pouca autonomia, poucas experiências da vida cotidiana e vivência comunitária.

Embora a convivência comunitária seja garantida por lei, foram relatados poucos vínculos fora dos abrigos. A exceção são os casos em que houve apadrinhamento afetivo, proporcionando algum convívio social.

“Eu tinha 17 anos quando conheci minha madrinha do apadrinhamento afetivo. Eu conheci ela no momento assim, sabe quando você quer desistir, e desiste mesmo de tudo na vida? Ela foi a luz no fim do túnel, foi minha âncora. (Rosa (nome fictício), Distrito Federal, 24 anos).

Como dissemos anteriormente, a vontade de fazer parte de outros contextos e a falta de apoio de adultos como referência são pontos centrais das críticas dos jovens, sejam eles padrinhos, irmãos mais velhos, educadores ou pais adotivos. Embora alguns tenham contado com educadores como referência nos seus processos de transição, os jovens consideram que não tiveram o apoio formal que precisaram por parte das instituições onde moravam.

“… numa família estruturada, quando faz 18 anos, a mãe não fecha a porta na cara dele, ‘tchau, agora é com você’. E com quem tá no abrigo, é assim que acontece, independente se você ficou lá 10 anos, ou um mês. É tchau! A partir de agora, é você e você. Então acho que deveria sim, ter um acompanhamento pós desligamento” (Íris, São Paulo, 30 anos).

Adoção

A maioria dos jovens não foram adotados: dos 27 entrevistados, apenas 3 foram para famílias substitutas após os 16 anos. Houve alguns relatos de adoções ilegais, antes de irem para o abrigo. E, um caso ainda pouco discutido pela sociedade veio à tona no estudo: as adoções malsucedidas. 

Foram vários os relatos das chamadas “devoluções”, ocorridas depois de um ano de convivência entre os jovens e a família adotiva. Quando foram questionados sobre os motivos das rupturas em casos de adoção, os jovens em geral relataram que as relações “não deram certo” e que as famílias tinham expectativas equivocadas em relação a eles.

Houve consenso, entre eles, sobre a necessidade de preparar melhor as crianças e os pretendentes que querem adotar, para evitar o rompimento de vínculos após a concessão da guarda. Muitos falam da importância da busca ativa para os casos de adoção de crianças maiores e adolescentes, chamada de necessária ou adoção tardia.

É claro que aqui trazemos apenas uma pincelada do conteúdo. Para ler o material completo, baixe o ebook aqui. Na pesquisa, você encontrará relatos e estudos mais aprofundados, gráficos e a opinião e vivência dos adolescentes sobre todos esses temas e o que eles pensam sobre o trabalho das Varas de Infância e Juventude. E também uma síntese sobre os principais problemas encontrados e sugestões para solucioná-los. Vale a pena ler!

*Imagens: Freepik

 

 

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