Saúde é um assunto sempre em alta, especialmente nos dias atuais. Vamos falar aqui sobre a saúde da mãe e, sobretudo, da criança nos primeiros mil dias de vida, ou seja, o período que vai da concepção do feto até os dois anos de idade. Para isso, trazemos uma conversa esclarecedora com o Dr. Nelson Arns Neumann, médico e coordenador internacional da Pastoral da Criança, cuja palestra no III Seminário Internacional de Acolhimento Familiar, que aconteceu em Campinas, pode ser conferida aqui.
IGA: O que são os mil dias na vida de uma criança?
É o período que compreende desde sua concepção até os dois anos de idade – ou seja, 270 dias de gravidez + 365 dias no primeiro ano + 365 dias no segundo ano de vida, num total de mil dias. Esse período que faz parte da “Primeira Infância” é o mais crítico para a saúde, crescimento e desenvolvimento emocional e neurológico, como recentemente a neurociência comprovou.
O que percebemos hoje é que a preocupação (em termos de cuidados) das mães e pais com as crianças não é tão grande quanto era no final dos anos 1980, quando a taxa de mortalidade infantil era de 10%, sendo que 1/3 delas eram desnutridas. Agora há um sentimento de que, diante de qualquer problema, o Estado e os serviços de saúde irão dar conta.
Para despertar essas pessoas, o que fazemos na Pastoral da Criança é trazer a elas uma reflexão sobre nossa realidade, nossa situação real.
IGA: Qual a importância da gravidez para o desenvolvimento da criança e para a fase adulta?
No início dos anos 1990, na Inglaterra, o Dr. David Backer e sua equipe de pesquisa avaliaram crianças que nasceram com baixo peso (menos de 2,5kg) e perceberam que, ao chegar na fase adulta, essas pessoas tinham uma taxa de mortalidade maior aos 40 anos de idade, devido a doenças do coração. Mas o que tem haver o peso ao nascer com o infarto?
O impacto da gestação perdura pela vida toda!
Quando a gestante passa fome, seja por falta de alimento ou até mesmo por dieta para não engordar muito, o bebê também passa fome e acaba nascendo com baixo peso. Em uma situação de escassez de nutrientes no desenvolvimento do feto, a natureza dá sempre preferência absoluta ao cérebro em relação aos outros órgãos, mesmo ao coração.
Nesta situação não há quantidade de nutrientes disponíveis para a formação de todos os órgãos, que acabam ficando menores. Os estudos mostraram, por exemplo, que uma criança que nasce com baixo peso tem um rim 3 vezes menor. Isso, no futuro, e a depender do estilo de vida da pessoa, pode levar a problemas renais, como a insuficiência.
O coração também sofre os efeitos da falta de nutrientes. Sendo menor, o coração tende a se sobrecarregar mais no decorrer da vida, apresentando mais riscos de desenvolvimento de doenças. Daí a maior chance de infarto precoce.
Percebeu-se, então, que quando há falta de alimentação para a criança ainda no ventre materno, o organismo tenta se readaptar.
Outro exemplo é a resistência à insulina. O açúcar disponível deve ter como prioridade o cérebro. Para aproveitar o açúcar, precisamos de insulina para a maior parte dos órgãos, mas não para o cérebro. Então para sobrar açúcar para o cérebro, o organismo se adapta para os órgãos e músculos não “perceberem” a insulina.
A criança que nasce com baixo peso tem o dobro de chances de ser diabética quando adulta. E como tem glicemia elevada, também apresenta uma tendência maior à obesidade.
Outro exemplo é o que ocorre com o fígado, que também não cresce tanto e tem dificuldades em controlar o colesterol na vida adulta. Com o aumento do colesterol, aumentam as chances de doenças cardiovasculares em um coração que já sofre por ser pequeno.
Bebês pequenos têm menos cálcio nos ossos (menor massa óssea). Também têm menos músculos, devido à alteração em dois hormônios: cortisol e o GH, o hormônio do crescimento. Estes problemas levam a uma menor reserva de massa óssea e a uma perda mais rápida no processo de envelhecimento. Com isso, acontece a osteoporose.
Um estudo nos EUA procurou saber porque alguns idosos acima de 70 anos ficavam de cama e outros não. Em termos de músculos, nascemos mais ou menos com o mesmo número de células no coração e no corpo que teremos ao longo de toda a vida. É preciso muito exercício físico para aumentar o tamanho e o número de células. Então, quando um idoso, já com menos musculatura tropeça e cai, ele quebra o osso, e se ele tem osteoporose esse osso demora ainda mais para se consolidar.
Doenças na vida adulta, associadas ao baixo peso no nascimento:
– Doenças cardiovasculares
– Diabetes
– Obesidade
– Osteoporose
– Colesterol alto
– Problemas renais
– Hipertensão arterial
IGA: E a idade materna?
Na Dinamarca, há uma preocupação com a gravidez na adolescência (para eles, considerada abaixo dos 20 anos), devido à maior prematuridade e maior retardo de crescimento intrauterino, ou seja, as crianças não cresciam bem. Isso ocorria com os mais pobres, que eram os que mais engravidavam cedo. Então era um problema de pobreza ou um problema de idade? Ao analisar, perceberam que engravidar antes dos 20 é igual ou melhor que engravidar entre 20 e 25 anos. A conclusão do Jornal Internacional de Epidemiologia para esse caso foi que:
Programas de políticas públicas que querem melhorar os resultados das gestações, ao invés de focar apenas na prevenção da gravidez na adolescência, devem focar na diminuição da desigualdade social.
Lá, o risco da gravidez após os 30 anos é muito maior, mas não é percebido porque em geral o nível socioeconômico dessas mulheres é maior, com renda mais alta e melhores condições, por exemplo, de ficar em casa se cuidando enquanto o salário continua sendo depositado. Uma gestante começa a ser considerada “idosa” a partir dos 28 anos de idade, e a cada ano o risco aumenta mais, incluindo, claro, o desenvolvimento da criança, mesmo após o parto.
IGA: Por que a cesariana é tão evitada em todo o mundo?
Aqui no Brasil sabemos que é mais comum nascer de cesariana do que de parto normal. Mas no restante do mundo a cesariana não é a regra porque há muitos riscos implicados, especialmente quando agendada. Quando a cesariana é agendada significa que a mulher não entrou em trabalho de parto, ou seja, não era hora do bebê nascer. Ele só nasce quando está “maduro”, especialmente quando cérebro e pulmões estão prontos para a vida fora do útero. Pesquisas indicam que bebês nascidos duas semanas antes da hora têm mais chances de desenvolver problemas respiratórios agudos e, por consequência, de precisar de cuidados em UTI. Para as mulheres, a cesariana aumenta o risco de hemorragia e infecções, podendo levar à morte.
Outros estudos fizeram uma investigação sobre a flora intestinal, estudando o intestino de crianças que nasceram por cesariana e comparando com os que nasceram de parto normal. Foram localizados 70 mil tipos diferentes de microrganismos, contra incríveis 1,3 milhão presentes no intestino de crianças que nasceram por parto normal. Quem nasce de cesariana tem os microrganismos da pele da mãe e do ambiente hospitalar, ao passo que quem nasce de parto normal tem contato com os da vagina, mais benéficos e fisiologicamente necessários em nossa flora intestinal. Com a diferença de microrganismos no intestino decorrentes da cesariana, há prejuízos para a flora do intestino. Hoje se sabe que o intestino é nosso segundo cérebro e “controla” muito do nosso organismo. Há, inclusive, microrganismos no intestino que produzem inclusive dopamina, que deixa a gente de bem com a vida.
E mais: 8% dos carboidratos presentes no leite materno são utilizados para alimentar essas bactérias e dar estabilidade ao intestino. Há pesquisas que mostram que crianças que não tiveram aleitamento materno morrem 14 vezes mais por diarreia e 4 vezes mais por pneumonia.
Outra questão sobre a cesariana é que, segundo estudo de revisão publicado na revista Frontiers Psychology (2019), há evidências que o parto cesáreo tem efeito de curto e longo prazo na saúde mental de crianças, desde a percepção sensorial logo após o nascimento, na relação da mãe com a criança logo após o parto e indicativos que vários distúrbios mentais comuns estão associados à cesariana. Porém ainda são necessários mais estudos para diferenciar entre a simples associação e a causalidade entre as doenças e o tipo de parto.
Estudos mais recentes mostram que a cesariana está associada a maior risco de:
– ruptura uterina
– natimortalidade
– parto prematuro
– gravidez ectópica, entre outros.
Esses riscos aumentam com o número de cesarianas. Essas pesquisas foram feitas comparando cesáreas e partos normais eletivos em final de gestação, ou seja, só com mulheres que chegaram ao final da gestação e decidiram como seria feito o parto.
IGA: Qual a data ideal para o parto?
O nascimento ocorre, em média, entre 38 e 42 semanas de gestação, para 95% das gestações. Mas tem muita diferença nascer com 38 ou com 42 semanas, pois cada situação é diferente. Tem bebês que já estão totalmente maduros com 38 semanas, outros só com 42 semanas. O que define isto mesmo é o trabalho de parto espontâneo. Minhas duas filhas, por exemplo, nasceram de parto normal com 41,5 semanas. Se elas tivessem nascido com 38 semanas, provavelmente passariam um tempo na UTI, pois o pulmão delas não estaria maduro.
IGA: Quais as consequências do parto precoce?
Perguntam muito se a criança respira dentro da barriga da mãe. Ora, seria o mesmo que respirar embaixo d’água. O pulmão é o último órgão a amadurecer, e segundo o Ministério da Saúde, uma criança que nasce duas semanas antes do tempo, que é o que os médicos que fazem cesáreas costumam agendar, tem 120 vezes mais chances de ter problemas respiratórios agudos.
E outra coisa: ao nascer a criança não sabe controlar a respiração, pois nunca treinou para aquilo. Esse excesso de oxigênio libera radicais livres, que podem prejudicar as células sensíveis do fundo do olho. Por isso a recomendação é que o bebê precisa mamar nos primeiros 20 minutos após o parto, pois o primeiro leite, o colostro, é riquíssimo em antioxidantes, que neutralizam esses radicais livres e preservam as células, especialmente as mais sensíveis. Com uma semana de vida, consumindo leite materno, a criança já sabe respirar e cria seus próprios antioxidantes. Já a criança que nasce antes do tempo e vai para a UTI tem mais problemas, mais dificuldade em controlar o ritmo respiratório, e os médicos vão colocar mais oxigênio para preservar o cérebro.
O Brasil enfrenta uma epidemia de partos precoces e prematuros ligados à cesariana. Essas taxas trazem maior risco de mortalidade e morbidade infantil a longo prazo, e em comparação com países de renda alta, trazem um excesso de 354 mil nascimentos prematuros ou precoces no país.
IGA: E como fica a saúde da gestante?
No Brasil, a maior parte das gestantes “passa fome”. Aqui, gestantes devem ganhar 12 quilos durante a gestação, sendo o mínimo 9 e o máximo 15 kg. Mas essa curva está errada, os estudos mundiais atuais mostram que uma gestante normal deve ganhar 13,7 kg.
No Brasil, os obstetras dizem que 7, 9 quilos está bom, e as mães ficam orgulhosas por ganhar pouco peso. Quem passa fome é o filho, e essa fome tem consequências. Falamos sobre crianças que acabam ficando obesas, e isso ocorre porque o organismo se acostuma a poupar e continua poupando mesmo após o nascimento, com o consumo de uma alimentação mais calórica, e essa tendência permanece pelo resto da vida.
Uma alimentação adequada na gestação, fazer pré-natal, não fumar, ter parto normal, aleitamento materno, tudo isso é básico, porém de extrema importância.
IGA: Por que o aleitamento materno é tão importante para o desenvolvimento?
Um estudo iniciado em 1982 com crianças nascidas em Pelotas, RS, e realizado ao longo de 30 anos, demonstrou que a renda dessas pessoas aos 30 anos era mais alta em cerca de R$ 340,00 para aqueles que haviam mamado no peito por mais tempo. Parece sem sentido, mas é um efeito dose-resposta, pois havia toda a série histórica: o QI (coeficiente de inteligência), composto pelo melhor cérebro e pelo melhor treinamento. O melhor cérebro ocorre devido à melhor alimentação, pois a criança que mama no peito fica menos doente e, consequentemente, pode aproveitar melhor o aprendizado, tanto na escola quanto na vida.
A Danone, gigante dos laticínios, fez uma pesquisa na Alemanha para desenvolver um leite semelhante ao materno. E durante a pesquisa, descobriram que o leite da mãe nunca é igual, mesmo sendo da mesma mulher: de manhã a criança em jejum recebe um leite mais reforçado. Se o tempo esquentar, o leite hidrata um pouco mais. Se a criança passar por alguma virose, o leite fica diferente novamente para ajudar a criança a criar anticorpos. Além disso, o leite para os meninos é mais “gordo” que o das meninas. Com isso tudo, é claro que não havia um jeito de chegar sequer perto de reproduzir o leite materno.
IGA: Como o estresse tóxico pode afetar a saúde da criança?
Outra coisa importante é o nível de estresse a que a criança, ainda pequena, é submetida. Todo mundo vai ter algum estresse na vida e é saudável aprender a lidar com o estresse. O bebê tem cólica e isso é um estresse, mas quando a mãe o pega no colo isso ajuda a controlar. O mesmo acontece com os machucados. Já a criança que sofre de estresse tóxico, por drogadição, separação dos pais, negligência, abandono etc, terá um nível alto de cortisol por toda a vida e ficam em situação de reação, o chamado “pavio curto”. Terão mais propensão ao uso de drogas, depressão, suicídio, mais parceiros sexuais. Porque com a situação de violência, negligência, abusos, não tem a possibilidade de criar uma relação afetiva e duradoura com os pais, portanto, não aprendem a criar vínculos estáveis em sua vida.