Como orientar uma família para lidar com as crianças e adolescentes no Acolhimento Familiar e na Adoção? Como lidar, sem julgamentos, com mães que abandonaram seus filhos e com as esperanças das crianças que aguardam por uma família? E mesmo sabendo que não há um “manual”, quais os conceitos que podemos ter como base ao acompanhar e orientar o desenvolvimento de nossos filhos? São essas respostas que buscamos em um papo com Lídia Weber, psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Experimental, com pós-doutorado em Desenvolvimento Familiar. Ela nos traz um relato preciso, real e por vezes doloroso sobre o tema, baseado em suas pesquisas, vivências e experiências profissionais. Para assistir sua palestra no III Congresso Internacional de Acolhimento Familiar, clique aqui.
IGA: Qual a importância do afeto e do vínculo na relação com as crianças, especialmente as que vivem com famílias acolhedoras ou são adotadas?
Lídia Weber: Quando falamos de afeto, estamos também falando de amor. Como educar uma família vai além da família acolhedora. Precisamos de afeto em todas as famílias, pois o amor de família é aquele que tem um vínculo duradouro. A neurociência provou cientificamente a importância da conexão, da intimidade que você só tem em uma relação de afeto, de amor.
Quantos aniversários são comemorados na mesma data dentro dos abrigos, um dia mensal para celebrar todos os aniversariantes? Isso não pode ocorrer, porque o dia do aniversário é muito importante e particular. A vulnerabilidade é uma pré-condição para qualquer relação de afeto, e isso só acontece de fato com a proximidade que existe em uma família. Precisamos de carinho e afeto para levarmos pro resto da vida.
Precisamos sentir que somos amados e amar alguém, o que é fundamental e nos dá coragem e força para enfrentar a vida e seguir adiante, pois eu sei que acreditaram em mim.
IGA: Qual o papel das experiências que vivenciamos, para construir a relação com o outro e com o mundo?
A ciência nos classifica como seres biologicamente sociais ou biologicamente culturais. Somos a única espécie que não sobrevive sozinha, e temos a mais longa infância entre todas as espécies, sempre mediada por um adulto cuidador. É isso o que nos faz humanos, e para exemplificar isso existem algumas histórias um tanto dolorosas, que chamamos de experimentos não planejados da vida: crianças que foram criadas por animais, que se perderam em condições extremas, e acabaram perdendo suas características humanas, como por exemplo a menina Oxana, que apesar de viver com sua família, era criada e mantida pelos pais alcoólatras em um canil, junto com os cães. Depois que a encontraram conseguiram melhorar algumas condições, mas outras não -ela continua com comportamentos típicos dos animais.
Ou mesmo o menino John, que quando tinha entre dois e três anos testemunhou o pai assassinando a mãe e fugiu para a floresta, onde acabou adotado por um grupo de macacos e viveu com eles por muito tempo, até que o encontraram, também com características pouco humanas. Ou ainda as famosas Kamala e Amala, que foram descobertas nas selvas da Índia em 1920, tinham entre 3 e 7 anos e viviam com lobos, entre outros casos semelhantes que podemos citar, em que fica difícil para a pessoa até mesmo falar depois de algum tempo, devido à perda da característica humana. São casos extremos como esses que nos mostram a influência do ambiente e da nossa relação com nossa família e cuidadores.
Precisamos do amor e do cuidado de alguém que nos dê força, coragem, e nos mostre como é a vida, para que tenhamos um modelo.
Somos Homo sapiens sapiens, duas vezes sábios, e deveríamos saber que somos feitos para o amor, pelo amor, com o amor. Seres biologicamente culturais – o que quer dizer que o bebê vem pronto para amar, para se apegar com o adulto cuidador. O bebê enxerga melhor a 25 centímetros de distância, e sabe distinguir a voz e o cheiro de sua mãe desde poucas horas de vida. O bebê emparelha o batimento cardíaco com a mãe e com o pai, mas não com estranhos.
Isso tudo mostra a força da natureza de nossa espécie, onde a vivência e os relacionamentos de amor são o que nos aproximam, e isso é comprovado por estudos, como o Grant Study, iniciado em Harvard em 1938, que demonstrou que bons relacionamentos tem forte influência sobre a saúde física e mental, e que os laços emocionais são indicadores maiores do que índices de colesterol, QI ou carga genética, por exemplo. Os dados mais recentes do estudo, que já dura 80 anos e continua seguindo, chegam a uma conclusão muito relevante.
Quando chegamos à velhice o que mais importa é a soma de nossos afetos, do que aquilo que tivemos na vida. Então é nisso que precisamos investir.
IGA: Sabendo da importância do afeto, o que leva uma mãe a abandonar seu filho? Existem fatores que são comuns a essa realidade?
Fizemos uma pesquisa intitulada “O que leva uma mãe a abandonar um filho“, uma realidade que infelizmente ocorre todos os dias no Brasil. Descobrimos que as próprias mulheres usavam a palavra “abandono”. Havia um grupo de mulheres que deixou seus filhos e um outro que nunca teve esse comportamento e que serviu como grupo-controle para a pesquisa. Nós não perguntamos a essas pessoas porque elas abandonaram, mas sim como foram criadas por seus pais. Que educação elas receberam? E é aí que reside a grande questão.
O depoimento de uma delas dizia: “Minha família não morava aqui. Vim para trabalhar e engravidei sem querer. Eu estava sozinha, não podia ter uma criança na casa dos meus patrões, não tinha dinheiro, era nova demais, e por tudo isso abandonei minha filha.” – Eva, 31 anos.
Pesquisamos essas relações nos dois grupos: mães que abandonam e mães que não abandonam, e como era o envolvimento dos seus pais em sua vida. As que não abandonaram suas crianças disseram, em sua maioria, que às vezes recebiam orientações dos pais durante sua criação. Entre as que abandonaram, a resposta da maioria foi que nunca receberam qualquer tipo de conselho ou apoio de seus pais.
Outro dado que encontramos foi o de número de punições que essas mulheres receberam de suas famílias durante sua criação, e o resultado foi semelhante. As mães que não abandonaram seus filhos nunca sofreram punições no ambiente familiar, ao passo que aquelas que deixaram seus filhos relataram que sempre lidaram com essa realidade.
“Eu sabia que a menina estava bem, fiquei tranquila. Assim, eu saía tranquila para os bailes, e era só o que eu queria, me divertir.” – Dani, 37 anos.
Há diversos relatos semelhantes, mas nós podemos atirar pedras nessas mulheres? Ou vamos pensar em como essas famílias, assim como as crianças que citei no início, não deram o amor e o cuidado necessários a essas pessoas? Como elas podem se tornar mães, se sempre foram negligenciadas? Precisamos cuidar das famílias acolhedoras, precisamos cuidar de quem está nos abrigos, e precisamos cuidar das famílias e das práticas educativas em geral, pois a adoção moderna tem um longo caminho entre procurar um bebê para uma família e encontrar uma família para uma criança.
Hoje as crianças não são apenas protegidas por direitos, mas também são titulares de direitos juridicamente protegidos, ou seja, o direito ao afeto.
Somos um país rico, mas com uma desigualdade social absurda. Oficialmente há cerca de 35 mil crianças nos abrigos brasileiros, segundo o CNJ. Em 1989, durante minha primeira pesquisa para o livro Filhos da Solidão, achávamos que o Estatuto da Criança e do Adolescente resolveria tudo, mas aqui estamos, 30 anos depois, ainda aguardando, apesar dos avanços.
“Meu desejo é morar com pais adotivos. Acho que não serei adotado, pois faz bastante tempo que estou aqui.” – Beto, 13 anos.
Relatos como esse, de crianças maiores de 7 anos que se encontram em abrigos mostram a desesperança delas em serem adotadas e fazer parte de uma família. Em uma pesquisa recente de uma de minhas alunas, entrevistamos crianças que se encontram em duas casas-lares de Curitiba – PR, e também crianças que têm família e no contraturno escolar fazem parte de uma ONG. Falamos sobre esperanças, satisfações de vida, práticas dos cuidadores, e percebemos que precisamos trabalhar mais as práticas educativas. Para ilustrar a afirmação acima, trago alguns dados:
– 45% das crianças entrevistadas nas casas lares já estavam ali pelo menos pela segunda vez, sendo que algumas já haviam retornado quatro vezes para o acolhimento institucional;
– 53% delas permaneciam no abrigo por mais de dois anos, com algumas chegando a seis anos ou mais em acolhimento, ou seja, na prática muito acima do que diz a lei.
Os relatos mostram que as crianças em acolhimento institucional têm forte apego com os funcionários do local, que de fato cuidam delas, mas a realidade daquelas que estão com sua família e frequentam as ONGs também revela que teríamos muito mais crianças em acolhimento, se enxergássemos a realidade do que realmente acontece nessas famílias: estresse, separações, violência doméstica, alcoolismo. São relações muito ruins.
Família pode ser proteção, mas também pode ser risco.
Estudamos isso com muito cuidado na psicologia, pois temos questões que precisamos ensinar a essas famílias, com programas vivenciais, validados psicologicamente que sensibilizam para as tarefas.
Para finalizar, listarei brevemente os 12 princípios da Educação Positiva para famílias, que podem ser lidos detalhadamente no meu livro Eduque com Carinho:
12 princípios da Educação Positiva para famílias:
1 – Ame incondicionalmente
2 – Conheça os princípios do comportamento da criança
3 – Conheça o desenvolvimento da criança
4 – Conheça a si mesmo
5 – Use comunicação positiva
6 – Envolva-se na vida do seu filho em todas as fases
7 – Elogie, valorize!
8 – Mostre regras e limites claros, coerentes e consequentes
9 – Seja consistente, mas jamais espere perfeição
10 – Não use punição moral ou física, mas sim trabalhe com consequências lógicas
11 – Seja um modelo moral positivo
12 – Eduque para a autonomia, para a vida