Hoje falaremos sobre um assunto delicado e ainda pouco conhecido pela sociedade em geral: a destituição do Poder Familiar. O que é, como e porque acontece, qual sua relação com a adoção.
Mas para explicá-la, primeiro precisamos esclarecer o que significa “Poder Familiar”.
O Poder Familiar é o conjunto de deveres e responsabilidades inerentes aos pais em relação à pessoa e aos bens de seus filhos menores de idade ou não emancipados, com intuito de assegurar-lhes um bom desenvolvimento, seu bem-estar e sua proteção.
Explicado isso, podemos definir o que é a destituição do Poder Familiar. Pela lei, a destituição ou perda do Poder Familiar é a medida mais grave imposta pela legislação brasileira nos casos de descumprimento de relevantes deveres que foram incumbidos aos pais em relação aos filhos menores não emancipados, destituindo os genitores de todas as prerrogativas decorrentes da autoridade parental.
Por que acontece?
Importante destacar que a destituição é um processo judicial, quando se entende que os pais falharam de forma extremamente grave no cumprimento de seus deveres com seus filhos menores de idade. São várias as situações que podem levar a isso, mas a legislação é precisa quando afirma que a pobreza e a miséria não são motivos suficientes para a destituição do Poder Familiar. OBS: ver a descrição completa no artigo 1638 do Código Civil.
Além da violência de todo tipo, seja ela moral, física ou sexual, o que ocorre em diversos casos é a chamada negligência parental. São pais ausentes, incapazes, usuários de drogas ou que simplesmente não buscam suprir as necessidades básicas de seus filhos, sejam elas emocionais ou físicas. Ao contrário da violência e dos abusos, que constituem uma ação, a negligência é considerada justamente o contrário: uma omissão.
Uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público sobre causas da Destituição Familiar mostrou que 80% dos casos no Brasil ocorrem devido à negligência parental.
Mas no campo do direito, essa negligência é algo muito subjetivo, e é preciso sensibilidade para distinguir o que de fato é negligência e o que ocorre devido a outros fatores. Se há algo que se espera dos pais em relação ao cuidado com a criança, mas esses pais não podem ou não sabem como fazer, seja devido a condições econômicas, de saúde ou intelectuais, por exemplo, é preciso bom senso e profissionalismo por parte dos juízes para analisar a situação.
Segundo Pedro Hartung, advogado e coordenador do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, “não temos uma definição compartilhada do que significa negligência parental. Para alguns, por exemplo, é dependência química, para outros é somente a ausência, então é preciso um consenso para possibilitar uma decisão de confiança por parte do sistema judiciário”. Lembrando que essa decisão não afeta somente a criança ou adolescente, mas também sua família e parte da comunidade que trabalha e convive com ela.
Falando na família, claro, ela tem por obrigação prover as necessidades básicas para o desenvolvimento saudável da criança. Mas, diante das desigualdades sociais e econômicas que temos no Brasil é fundamental a existência de políticas públicas, como o acompanhamento sistemático das famílias em situação de vulnerabilidade. Isso, inclusive está proposto no ECA.
“Uma criança não é sozinha no mundo, por isso a importância da convivência familiar. E ninguém cuida de uma criança sozinha. O apoio da sociedade é essencial. Por isso, muitas vezes, para cuidar das crianças, é preciso cuidar de quem cuida delas”, conclui Hartung.
O verdadeiro objetivo da destituição do Poder Familiar não é castigar a família, mas sim proteger o melhor interesse da criança e do adolescente.
De acordo com o artigo 101 do ECA, somente pode haver destituição do Poder Familiar após terem sido esgotadas todas as medidas de apoio aos pais da criança/adolescente e ficar comprovada a impossibilidade de reintegração familiar, com a família de origem ou extensa.
O processo de destituição ocorre por provocação do Ministério Público ou de qualquer pessoa que tenha legítimo interesse. Após aprofundada avaliação do caso e a manifestação de todos os envolvidos, caso seja julgado procedente, a ação de destituição será deferida pela autoridade judiciária da comarca do domicílio do menor ou onde ele se encontrar.
E depois?
A destituição retira a responsabilidade dos pais sob o menor e a repassa para o Estado ou para outra família, em casos de adoção.
Uma vez que a sentença de Destituição do Poder Familiar tenha sido proferida e transitada em julgado, ela é irreversível e a família biológica perde todo e qualquer direito sobre aquela criança.
Aqui vale um esclarecimento fundamental e que tem gerado muitas polêmicas: a adoção só pode ser concedida após a destituição do Poder Familiar. Isso é umas das explicações de existir tantas crianças e adolescentes em instituições de acolhimento. Ou seja, a maior parte das crianças estão acolhidas enquanto aguardam a solução de sua situação: serem reintegradas à família de origem ou irem para a família extensa (avós, tios, parentes próximos) – somente esgotadas essas possibilidades e após a destituição, é que podem ir para adoção.
A maioria das Varas das Famílias e juízes concedem a guarda com vias à adoção apenas após a destituição em trânsito julgado, como preconiza o ECA. Mas temos visto casos polêmicos, que se arrastam por anos, em que a guarda foi concedida sem o processo estar concluído, causando danos a todos os envolvidos como o recente “caso Vivi”.
Em resumo, a destituição parental vai muito além do cumprimento da lei. O mais importante e delicado é lidar com as experiências, emoções e traumas da criança, com todo o respeito imprescindível a ela. Não é raro o próprio processo de destituição ser também um motivo de trauma.
Toda a vivência da criança está ligada a essa questão e é preciso garantir que todos os lados também estejam amparados: criança, família de origem e extensa, cuidadores, pretendentes à adoção e até mesmo os profissionais envolvidos no processo.