Incluir a criança em seu próprio processo, para que ela tenha consciência de cada etapa de sua situação e do que ocorre à sua volta. Acolhê-la para que enxergue o mundo com os próprios olhos e no futuro caminhe com os próprios pés, com segurança, sabendo que tem o apoio de um adulto em quem confiar. É sobre isso que conversamos com a Doutora em Serviço Social e Coordenadora do Plano de Primeira Infância de Campinas (SP), Jane Valente, que compartilhou conosco sua visão sobre o lugar da criança no Acolhimento Familiar. Confira a conversa a seguir:

IGA: Como deve ser a metodologia para o serviço de acolhimento familiar?

Jane Valente: Quando falamos sobre metodologia de um serviço de Acolhimento Familiar, é preciso que ela seja muito clara. Quando trabalhei, primeiramente como assistente social no serviço de Acolhimento Familiar, depois como coordenadora e posteriormente como Secretária de Assistência Social de Campinas (SP), tive a oportunidade de ver o serviço por vários olhares diferentes. E uma das coisas que chamou minha atenção, e que depois se reforça no momento em que eu volto para fazer a pesquisa com as pessoas que passaram pelo Acolhimento Familiar, é o lugar dado para a criança no serviço de Acolhimento Familiar que possui metodologia. Isso acrescenta um grande diferencial, tem uma importância muito grande!

Existe uma pesquisa americana que diz que nós precisamos ouvir as crianças. Nem sempre o que ouvimos das crianças nós podemos atender, mas o fato de ouvir a criança direciona nossas ações. Então o pedido de uma criança precisa ser ouvido. Embora nem sempre possa ser atendido, será o nosso guia profissional.

IGA: Em relação à essa metodologia aplicada na prática, há algum exemplo que poderia compartilhar?

Jane: No meu livro, que é resultado da minha pesquisa de doutorado, cito o caso de uma menina, que ainda não tinha doze anos, que estava no serviço há pouquíssimo tempo. E conforme eu falava sobre o serviço para ela, o corpinho dela se fechava: ela não queria falar sobre aquilo. Eu respeitei aquele momento e comecei a mudar o rumo da conversa. Então ela foi se soltando e no meio da entrevista disse: “Amanhã a minha irmã vai fazer um exame de sangue.” Eu perguntei quem havia explicado aquilo para ela, e ela contou que foi a “tia” lá do SAPECA (Serviço de Acolhimento e Proteção Especial à Criança e ao Adolescente, de Campinas), e que o exame serviria para a irmã descobrir se determinada pessoa era o pai dela. Contei a ela que o exame se chamava DNA e perguntei se sabia o que era – ela confirmou que a tia havia explicado. Nisso ela se soltou, pois se sentiu parte daquela história. Ou seja, como vivia com a sua mãe até chegar ali, ela não podia tocar no assunto, pois se ela tocasse estaria falando das falhas de sua família, e o que eu sempre percebi no meu trabalho com essas crianças é o quanto elas protegem… Apesar de tudo aquilo que elas passaram, é difícil para elas falarem sobre essas questões.

Novamente vou falar de sutileza: o que é uma criança fazer parte da própria história! E é isso que eu percebo na metodologia que eu vivi do Acolhimento Familiar, onde tudo o que acontece – do momento em que a criança chega, e em cada situação que vai sendo posta – ela faz parte de todas as etapas. Então a criança sabe em que momento está, o que está acontecendo com os seus pais, em que momento está o relatório que está sendo encaminhado, e ela vai fazendo parte disso tudo.

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Acolhimento Familiar: é preciso incluir a criança em seu próprio processo.

IGA: Ou seja, uma criança consciente de como está sua situação e seu processo naquele momento.

Jane: Me lembro de outro caso, quando fui a uma festa de Natal do serviço (eu já não estava mais trabalhando lá), e estava balançando uma criança. Então ela virou e me disse: “Tia, eu agora tenho uma mamãe, eu tenho um papai e tenho uma vovó!” Eu sabia que ela estava indo para adoção, e a embalando eu disse: “Não diga! Papai Noel trouxe uma família para você?” Ao que ela se virou e respondeu: “Não, foi a Isabel da Vara.” E eu achei aquilo o máximo! A criança estava preparada, não havia Papai Noel, não estava fora do processo. A realidade estava dizendo que naquele momento de passagem ela estava indo para uma família, que ela tinha um pai e uma mãe. Ela também ficou sabendo da sua história.

Quando as crianças são parte da própria história, elas pisam no chão de outra forma, elas conseguem “falar” a respeito.

 

IGA: Como devem agir os profissionais e a família acolhedora, que lidam diretamente com a criança a fim de garantir esse bem-estar e consciência?

Jane: Eu digo que o cuidador, ou seja, nós que somos profissionais, precisamos olhar para o acolhimento e dizer à criança: “venha, eu te acolho!” Mas devemos virar a criança para o mundo, e ser a sustentação para que ela veja o mundo dela, que significa: “eu tive pais que não conseguiram cuidar de mim, por isso estou aqui”. Mas nós vamos todos trabalhar juntos para ver se seus pais conseguem cuidar de vocês. E já vamos atrás de uma avó ou de um tio e o trazemos para perto, porque se a criança volta para os pais, a avó e o tio já foram trabalhados, e eles formam uma rede de proteção. Caso os pais não possam, eles já estão preparados para acolher essa criança.

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Acolhimento familiar: adultos devem dar suporte para que criança enxergue sua realidade com os próprios olhos.

E é esse desenho que eu gosto de deixar claro para a criança: olhe para o mundo, mas pode encostar, porque você tem o adulto cuidador para te ajudar a olhar o seu mundo!

A vida da criança é dela. Ela não pode ser privada da verdade, pois se ela tiver proteção e cuidado, será capaz de olhar a própria vida, entendendo a verdade dos seus pais e a sua própria.

 

IGA: E a longo prazo, é possível perceber as diferenças comportamentais e sociais devido à aplicação dessa metodologia?

Jane: sobre isso, convido todos a lerem meu livro, que pode ser baixado gratuitamente online em pdf, onde conto a história do Leandro, que foi uma exceção dentro do serviço de média permanência, e ficou permanentemente no acolhimento familiar, mas visitando sua mãe e sua avó com frequência. Essa é outra defesa que faço: crianças cujos pais têm problemas psiquiátricos não precisam ser destituídas do poder familiar. Elas podem ter uma família acolhedora, que realiza a atividade de vida diária necessária a um ser em condição de desenvolvimento, mas também podem viver a afetividade de seus pais, e crescer sabendo que não foram deixadas de lado, somente tiveram pais que não conseguiam cuidar dela. Então ela vai convivendo com esses dois lados.

O Leandro, já adolescente, disse em entrevista algo que eu jamais quero esquecer. Ele diz que “A família acolhedora na minha vida é aquela que me colocou no mundo, que me faz enfrentar o mundo. A minha família é onde eu vou para esquecer o mundo”. E ele tem esses dois espaços em sua vida.

Usando o Leandro como exemplo: por que nós não podemos permitir que as crianças tenham esses dois espaços? Ele tem uma história dolorida, e teve a oportunidade de fazer perguntas sobre essa história e receber respostas. Por si próprio, no caminhar da vida dele, foi vendo e percebendo que tanto a mãe, quanto o pai, quanto a avó não tinham condições para criá-lo por terem problemas, mas que ainda assim ele pôde ser cuidado. E a última coisa que ele diz na entrevista é que o sonho da vida dele é ter um emprego e uma casa onde ele possa acolher a avó e a mãe. Então ele foi cuidado esse tempo todo, por pessoas que o colocaram para olhar para o mundo, mas jamais se afastou de seus familiares. Essa é mais uma questão que temos que desenvolver: esse pensamento como política pública em nosso país!

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