O Acolhimento Familiar é uma medida de proteção e, por lei, deve ser preferencial ao acolhimento institucional. Os ganhos para a criança e o adolescente que estão em uma família acolhedora são imensuráveis. Mas também há vitórias para a sociedade como um todo. Por isso, há urgência em conscientizar e disseminar a cultura do Acolhimento Familiar por todo o Brasil. É sobre isso que conversamos com Neusa Cerutti, assistente social, que foi coordenadora do Serviço de Acolhimento Familiar de Cascavel no Paraná – cidade referência em Acolhimento Familiar no Brasil, que hoje tem 100% de suas crianças em famílias acolhedoras.

IGA: Para começar, por favor fale um pouco sobre o histórico do acolhimento familiar no Brasil e as mudanças que estão ocorrendo para que esta modalidade de acolhimento seja cada vez mais utilizada.

Neusa Cerutti: A pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostrou a fragilidade do sistema de acolhimento institucional no Brasil e a partir disso foi preciso criar estratégias. Uma delas foi a criação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Mais importante ainda foi a mudança realizada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A pesquisa começou em 2004, a criação do Plano ocorreu em 2006 e em 2009 tivemos a reformulação do Estatuto, que é a lei maior que rege todo o trabalho de atendimento à criança e ao adolescente. Nessa reformulação, entre outras mudanças, estabeleceu-se o Acolhimento Familiar como prioritário ao acolhimento institucional. Isso é fruto do envolvimento de muitas pessoas que trabalham no cotidiano com a criança e o adolescente vítimas da violência – que consequentemente estão nos abrigos – e começaram a perceber o tamanho do prejuízo que o abrigo institucional traz para essas pessoas. Nós que trabalhamos no dia a dia do acolhimento percebemos isso em cada caso que a gente atende: o vínculo afetivo que a criança constrói no Acolhimento Familiar, todo o estímulo que ela receberá no seio de uma família e que não se encontra no ambiente institucional.

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O Acolhimento Familiar proporciona vínculo afetivo essencial ao desenvolvimento da criança, que não é encontrado no ambiente institucional.

IGA: E como trazer para a sociedade a consciência das vantagens e benefícios que o Acolhimento Familiar traz para as crianças e adolescentes, em medida de proteção?

Neusa: Para vencer essa dificuldade de compreender o quanto o Acolhimento Familiar é essencial para a vida de uma criança que foi afastada de sua família, temos de olhar para essa criança ou adolescente e enxergar neles nossos próprios filhos. Do contrário, vamos continuar enxugando gelo sem conseguir avançar. Pois do nosso filho sabemos todas as necessidades e buscamos garanti-las. Então, se eu olho para aquela criança que chegou no abrigo de forma diferente da que eu olho para o meu filho, eu não vou conseguir garantir o direito dela!

Nossa luta hoje é retirar crianças e adolescentes dos abrigos e colocá-los em uma família acolhedora, pois temos a certeza de que não há comparação. Estamos gastando muito dinheiro para explicar o óbvio.

Nós somos frutos de uma família. E se somos frutos de uma família, por que defendemos que o abrigo é bom para o outro?

Tenho dito isso pelo país inteiro: o abrigo é bom para quem? O abrigo é bom para o filho do pobre e para o filho do outro, porque para o nosso filho não é!

IGA: É preciso ter uma visão igualitária sobre os direitos dessas pessoas?

Neusa: Sim. Hoje temos no Brasil uma legislação consistente sobre os direitos básicos da criança e do adolescente. A criança tem direito a ter uma família, de ter seus direitos básicos – como saúde, educação e lazer – garantidos. Quando entendemos que essas pessoas são portadoras desses direitos, paramos de querer oferecer “qualquer coisa” para ela. Se pararmos para pensar, o abrigo é isso: não estamos fazendo uma crítica negativa ao abrigo x ou y, ou ao trabalho das pessoas nos abrigos, mas sim ao sistema de acolhimento institucional. Por mais que os profissionais do abrigo queiram garantir os direitos dessas crianças, eles não vão conseguir, pois o direito integral da criança só é possível dentro de uma família. E por melhor que o abrigo seja, ele não conseguirá construir os vínculos afetivos e de confiança que existirão com a família acolhedora.

Temos de pensar no Acolhimento Familiar como forma de garantia de direitos para o acolhido, e não como apenas um favor, uma caridade, uma benevolência.

IGA: Na sua experiência profissional, quais as principais mudanças observadas nas crianças e adolescentes que estão em famílias acolhedoras, comparadas àquelas que somente viveram no ambiente institucional?

Neusa: Trabalho há dez anos no dia a dia dessas crianças acolhidas e sabe o que se percebe no Acolhimento Familiar? Relatos que não surgiam nos abrigos, como por exemplo casos de abuso sexual. No abrigo, que é um ambiente totalmente transitório, a criança não tem condições de expor sua vida e suas questões mais frágeis para alguém que não sabe se estará com ela amanhã.  Já no Acolhimento Familiar essas questões vêm à tona, pois ela sabe que pode confiar naquelas pessoas com quem convive lado a lado todos os dias. E assim são desenvolvidos os laços de afeto e de confiança que tornam possível a exposição desse tipo de relato de forma mais tranquila, pois a criança sabe que ali vai ser ouvida e acolhida, e que esses traumas e dores vindos das violências sofridas na família de origem serão trabalhados junto com ela.

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Os laços de afeto e confiança desenvolvidos no Acolhimento Familiar permitem que a criança exponha seus traumas e conflitos de forma mais tranquila.

Sempre trago a questão do abuso sexual à tona, porque atendi muitos casos e sei que esse é o tipo de violência que causa mais danos e traumas. Isso está totalmente ligado ao acolhimento, pois se eu não confio no outro, se eu não confio em ninguém, terei muito mais dificuldade de viver em família, de criar laços. Imagine ser abusado sexualmente pelo pai, tio ou avô, que são pessoas que para mim deveriam representar proteção e que apenas significam trauma, dor e violência. Com esse histórico, como vou confiar em alguém que eu nunca vi, em uma nova família que está chegando hoje para mim?

Mesmo diante de toda essa fragilidade, temos a consciência enquanto profissional, de que nessa família, no decorrer da convivência, a criança vai compreender que pode sim confiar em outra pessoa que não seja a família biológica, até muito mais do que ela poderia confiar se estivesse no abrigo. Então as vantagens são imensuráveis, pois não há como medir a diferença de comportamento e de conduta entre uma criança que vive muito tempo no acolhimento institucional e outra que vive na família acolhedora. As crianças que vêm da vivência em família acolhedora e vão para a adoção saem muito mais preparadas para a convivência do que aquelas que viveram somente em abrigos.

Nos meus anos de experiência com Acolhimento Familiar eu jamais vi casos de crianças que saíram da família acolhedora para a adoção e foram devolvidas – o que infelizmente sabemos que hoje é uma realidade no Brasil. Se fizermos uma análise, vamos verificar que essa criança que foi devolvida saiu de um abrigo. Ainda não há pesquisas científicas e precisamos pensar em como dar cientificidade a esses casos, pois são dados que não existem. Quantas crianças saíram do Acolhimento Familiar para a adoção e foram devolvidas? Do abrigo sabemos que são muitas, até porque o Acolhimento Familiar no Brasil não atinge 10% do acolhimento total: 90% das crianças e adolescentes ainda estão nas instituições, e por isso não temos os dados de devolução de adoções. Mas nós que acompanhamos de perto conseguimos ter essa visão: não vi crianças que saíram do Acolhimento Familiar e voltaram, mas acolhi crianças que retornaram da adoção e que antes estavam em acolhimento institucional.

IGA: O que podemos observar com a experiência de países onde o Acolhimento Familiar já é uma realidade?

Neusa: A convivência familiar e comunitária é tudo na vida de um ser humano. Somos frutos da convivência em família. Temos visto o Brasil gastar tanto em presídios, quando sabemos que se tivéssemos investido na criança e no adolescente em uma família, construindo estratégias e alternativas para eles, dificilmente precisaríamos fazer esse tipo de investimento. O trabalho que a assistência social faz, no sentido de resgatar essas pessoas, muitas vezes não é valorizado. E se não trabalhamos em prevenção, vamos ter de trabalhar depois, quando o problema fica muito mais grave e mais sério.

Precisamos mudar a cultura atual, pois só teremos uma sociedade realmente mais honesta, digna e igualitária quando investirmos de forma adequada em nossas crianças.

A criança é prioridade absoluta, ou seja, a maior parte dos investimentos tem que ser na infância. Mas isso ainda está só no papel, pois no Brasil não temos dado a devida atenção às nossas crianças e adolescentes. Se observarmos um país como a Irlanda, por exemplo, muito mais desenvolvido e com uma qualidade de vida muito melhor, 90% das crianças que estão em situação de vulnerabilidade se encontram em famílias acolhedoras. Na Holanda também, eles não tiram as crianças de suas casas, mas trabalham com agentes sociais que são pagos pelo governo para acompanhar a família e a criança sem tirá-la do seu ambiente. Como consequência desse investimento, lá existem prisões com celas vazias, presídios sem demanda.

Investindo na criança estamos investindo no futuro, mas isso precisa sair do discurso político, do papel, e virar prática, pois a criança precisa viver o presente.

E acredito que nosso trabalho de divulgar e sensibilizar a população sobre esse tema tem que ser constante. Não podemos descansar, pois se descansarmos, as crianças crescem. O bebê deixa de ser bebê, a criança deixa de ser criança e o adolescente torna-se adulto. E com isso perdemos muito tempo!

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