Chamado de período crítico, os primeiros 24 meses da vida de uma criança são extremamente importantes para seu desenvolvimento. Estudos mostram que a atividade cerebral de uma criança em medida de proteção que foi colocada em Acolhimento Familiar antes dos dois anos é idêntica à de uma criança que nunca passou por situação de vulnerabilidade, permitindo um desenvolvimento normal. Por outro lado, a exposição ao estresse em idade precoce, como ocorre com crianças que passaram por situações de abandono, acaba dificultando a capacidade de resposta a esse estímulo, fazendo com que, mais tarde, ela venha a responder a situações estressantes de forma atípica, muitas vezes com transtornos de comportamento.

Um estudo realizado pela equipe do Dr. Charles Nelson*, neurocientista norte-americano coordenador do Programa de Intervenção Precoce de Bucareste (BEIP) – o mais importante estudo mundial sobre os efeitos da institucionalização – mostrou, entre outros resultados, que crianças que passam mais tempo no acolhimento institucional têm muito mais chances de desenvolver problemas de comportamento externalizantes, como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), Transtorno de Oposição Desafiante (TOD), Transtorno de Conduta e déficit de aprendizagem, e internalizantes como ansiedade e depressão. É sobre isso que conversamos com ele na entrevista que você confere a seguir:

IGA: A partir de seus estudos no Programa de Intervenção Precoce de Bucareste, fale por favor sobre as descobertas em relação à resposta ao estresse em crianças institucionalizadas.

Dr. Charles Nelson: Uma resposta menor ao estresse quer dizer que o cortisol – hormônio responsável por ajudar o organismo a controlar o estresse – está em um nível mais baixo, portanto essas crianças quando crescem não reagem como deveriam.  Isso ocorre porque foram expostas, desde cedo, a situações de estresse intenso e prolongado, com altos níveis de cortisol – o que chamamos de estresse tóxico – e foram sensibilizadas por essas experiências. Assim, quando crescem e passam por desafios estressantes, elas não reagem bem e mostram uma resposta não adequada, justamente pelas repetidas vezes que foram expostas a situações desse tipo em idade precoce.

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Dr. Charles Nelson

IGA: Quando uma pessoa é viciada em algum tipo de droga, ela se torna cada vez mais tolerante àquela substância, inclusive aumentando o consumo para manter o mesmo efeito. Poderíamos dizer que com o estresse temos um efeito similar?

Dr. Nelson: Entendo a metáfora, mas creio que biologicamente são duas coisas distintas. A exposição às drogas, por exemplo aos opioides, muda o mecanismo de produção de dopamina do cérebro. Então quanto mais se consome, mais necessidade tem de se consumir. É preciso tomar cuidado, pois a sensibilização ao estresse não é uma inoculação. Sabemos que a exposição da criança a situações normais de estresse é saudável, no sentido de que elas aprendem a gerenciar isso. Mas o que estamos dizendo aqui é que crianças negligenciadas e expostas a estresse de alta intensidade ou prolongado (estresse tóxico) não sabem como lidar quando expostas a situações estressantes, e acabam “desligando”, se fechando, e essa falta de resposta não é nada saudável.

IGA:  Podemos dizer que os telômeros são as “tampas” dos cromossomos, responsáveis por proteger o material genético que o cromossomo transporta. A erosão dos telômeros ocorre normalmente com o avanço da idade, mas acontece de forma mais acentuada naqueles que passam por situações de estresse. A pesquisa mostrou que essa erosão é maior justamente no grupo de crianças que se encontrava em acolhimento institucional. Considerando a erosão dos telômeros nas crianças que não recebem o devido estímulo, há a possibilidade de que essa mudança nos cromossomos seja transmitida para a próxima geração, seus descendentes?

Dr. Nelson: Ótima pergunta! Às vezes chamamos isso de transmissões intergerações. Será que uma geração irá impactar a outra? Quando alguém diz “você pode me ouvir?”, você não sabe se aquela pessoa está de fato ouvindo ou não. Isso é a transmissão intergerações de adversidades. Na teoria, se temos uma mudança biológica profunda em uma pessoa, ela deveria ou poderia ser transmitida para a próxima geração, seus filhos. Temos uma situação interessante aqui, pois nossas crianças estudadas no início da pesquisa já se tornaram adultos e tiveram ao todo 11 bebês. Então um estudo com eles será capaz de nos responder se esses bebês já possuem telômeros mais curtos que o normal, comparados a outras crianças que não foram negligenciadas.

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Crianças expostas ao chamado “estresse tóxico” não sabem como lidar quando expostas a situações estressantes, e acabam se fechando.

IGA: Quando falamos sobre crianças institucionalizadas, pensamos nas crianças que estão hoje em abrigos e sabemos que as instituições atuais são diferentes daquelas que existiam na época da pesquisa na Romênia. O senhor acredita que se os estudos fossem feitos hoje, os resultados seriam os mesmos?

Dr. Nelson: Um dos motivos da nossa vinda ao Brasil foi porque queremos fazer um grande estudo em São Paulo para observar essa questão em particular. Assim como ocorre nas famílias, as instituições podem variar o tipo de cuidado que promovem: há famílias muito boas e famílias que não são boas e há instituições que são tão terríveis quanto as que estudamos e também aquelas que se empenham em fazer o melhor.

A literatura e a pesquisa nos mostram que o acolhimento institucional, por melhor que seja, não é tão eficaz quanto o cuidado familiar de qualidade.

Da mesma forma, nós esperamos que uma boa instituição não leve aos efeitos devastadores que vimos na Romênia e conhecemos instituições em São Paulo que nada têm a ver com aquela realidade. Por isso queremos fazer esse novo estudo, para verificar se podemos detectar os efeitos desse tipo de cuidado institucional e verificar como podemos melhorar isso.

IGA: As perdas para o desenvolvimento que ocorrem nas crianças institucionalizadas no período crítico (até os dois anos de idade) são irreversíveis?

Dr. Nelson: Essa é a pergunta que mais ouvimos e é uma questão muito importante. Falamos muito sobre períodos críticos, apresentando vários dados que mostram que crianças que entraram em famílias acolhedoras após os 2 anos de idade não tiveram a mesma resposta daquelas que foram colocadas anteriormente.

Imagine que eu quero fechar uma porta e você está do outro lado dela. Quando eu começo a empurrar, você pode empurrar de volta, mas quanto mais próximo eu chego de fechar a porta, mais difícil fica para você abri-la.  É o que acontece com a criança: quanto mais tempo ela estiver em uma situação ruim ou em acolhimento institucional, mais tempo você precisa para resgatá-la, e é possível que nós nunca consigamos trazer de volta um estado normal ou completo, mas elas podem recuperar muito se tiverem acesso aos recursos necessários. Na adoção, por exemplo, a família que adota pode providenciar para aquela criança todo tipo de serviço e terapia, e com isso buscar uma recuperação, ainda que não no nível de uma criança que nunca passou por essas experiências.

É possível perceber um padrão nos nossos resultados.

Os resultados no Acolhimento Familiar são sempre melhores que os encontrados no acolhimento institucional, mas o Acolhimento Familiar ainda não produz o mesmo resultado que a convivência familiar.

Então novamente: quanto mais tempo essas crianças passarem em acolhimento institucional, mais tempo elas levarão para se recuperar e algumas consequências podem ser irreversíveis.

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“Órfãos da Romênia” – Pesquisa realizada pela Universidade de Harvard comprova que o abandono por tempo prolongado pode causar danos neurológicos às crianças.

IGA: O que seria menos danoso para uma criança no período crítico: tirá-la da instituição e encaminhar para uma família acolhedora, separando-a por exemplo de um irmão mais velho, ou deixá-la na instituição para não romper esse laço, considerando que o irmão não poderia ir junto para a mesma família acolhedora?

Dr. Nelson: Essa discussão surge frequentemente quando esse tipo de caso ocorre. Como ninguém estudou isso, não temos uma resposta definitiva, mas existem muitas evidências de que romper relacionamentos entre as crianças é ruim para elas. A criança só deve sair de um local MENOS vantajoso para um local MAIS vantajoso para ela. Na Romênia, isso seria tirar a criança de uma instituição e colocá-la em uma família acolhedora, e quanto a isso as evidências são bem vantajosas do que aquelas quando há separação de irmãos. Mas não estou dizendo que seja irrelevante separar irmãos, mas que irmãos podem manter um relacionamento mesmo se não estiverem vivendo juntos, ao passo que os benefícios para o desenvolvimento que a criança recebe no Acolhimento Familiar, nos primeiros anos de vida, são de extrema importância.

*Neurocientista coordenador do Programa de Intervenção Precoce de Bucareste (BEIP), conhecido como “Órfãos da Romênia”. Professor de Pediatria, Neurociência, Psicologia e Educação na Universidade de Harvard. Diretor do Laboratório de Neurociência do Boston Children ‘s Hospital. Doutor em Psicologia Infantil e do Desenvolvimento, com pós-doutorado em Eletrofisiologia.

 

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